16 de março de 2004

Cláudio Júlio Tognolli - Mas você escreveu um artigo falando que o Caetano te prejudicou? Que deu o nome errado, que não era o teu?

Tom Zé - Não, eu escrevi coisas... Mas isso eu já falei! Sabe o que é? Se eu ficar falando em Caetano todo dia, fico dando uma importância tão grande a isso que prejudica minha própria capacidade de trabalhar. Então tenho que deixá-los em paz, vamos encerrar essa história, que eu proponho contar de uma maneira geral e honesta. Foi assim: eu fui enterrado vivo duas vezes. A primeira em 1940, porque minha família saía do campesinato e ia pra universidade e minha mãe, por uma rebeldia qualquer – talvez seja a única coisa artística que tenha havido na família antes de mim –, disse que não estudaria mais em colégio de freira. Meu avô, coitado, lá no interior, que não sabia o que fazer, teve que trazê-la pra Irará, porque, se não queria colégio de freira, ia botar ela onde? Numa pensão, uma moça? Então, minha mãe veio e ficou naquele buraco sem fundo, buraco negro onde ela foi ficando no barricão, uma moça com trinta anos já! Mas casou com meu pai, seu Everton, homem simples de Irará, mas um homem muito grande de coração. E então começaram a nascer em Irará aqueles bichinhos horrorosos, mal-educados. Eu e meus irmãos, ah, merecíamos morrer! E criança compreende tudo! Que a gente merecia morrer a gente sabia, a gente lia nas palavras de minha mãe, no não-verbal, no próprio ambiente a gente lia. E eu, digamos assim, escolhi 1940 para ter sido enterrado. Eu tô vivo hoje graças à psiquiatria e à minha irmã Guile, que me salvou, senão eu estava no manicômio. Isso é sem o menor charme, né? Pois muito bem. Então, depois, eu fui enterrado a segunda vez na divisão de espólio do tropicalismo. Em 1970... nossa, eu tinha tanta coisa pra falar aqui e tô falando disso! Em 1970 eu fui enterrado a segunda vez, porque em 1968 o tropicalismo existiu, em 1969 acabou, todo mundo viajou e em 1970 fui enterrado, não é porque alguém me enterrou, nem porque a imprensa não gostasse de mim, não é por nada do que possa parecer dentro dos papéis que certas pessoas são chamadas a exercer no Brasil, não é isso. Eu fui enterrado porque é uma coisa normal, se seu trabalho ainda está incompleto, se ele ainda não pode ser considerado uma estaca para fincar no chão, se ele não pode, como um pênis, furar a terra e... e é a terra como mãe, o pênis como céu e pai. É como Cronos comendo seus filhos, é normal! Em Irará, também se diz assim: “Você tá me chamando de veado? Por que, bicho? Eu não sou homem mesmo, não. Meu pai ainda não morreu, como é que eu posso ser homem?” Quer dizer, isso é mitologia grega, não sei de que maneira foi parar em Irará. Mas foi. Michel Simon, aquele professor belga que foi muito importante no teatro francês e no teatro mundial, foi na Bahia já bem velhinho, e eu era estudante de música e ele me pediu pra ilustrar as conferências dele com umas certas canções que me dava escritas. Eu fazia um arranjo. Nisso me deu uma canção chamada A Pastorinha (e canta), Destes montes venho saindo/ destes montes venho saindo/ à procura do meu gado/ que perdi lá no roçado/ lá em terra de afogado... Daí ele dizia: “Sabe de onde vem essa pastorinha? É da tragédia grega, do personagem da tragédia grega”. E como é que esse diabo veio parar na Bahia, no bumba-meu-boi? Então, tudo bem, só pra brincar de como o mundo anda pelo avesso. Então eu fui enterrado em 1970, como numa história mitológica, e não por alguma pessoa ou alguma instituição, não tenho queixa de ninguém nem de nada. Fui enterrado profundamente, sim, e depois David Byrne me tirou desse buraco. Esse buraco era muito profundo, era preciso tão cuidadosamente me ignorar, era preciso que uma estrutura de cimento e concreto muito forte estivesse sobre mim, que não fosse possível eu sair dali. Bom, eu só posso pensar isso hoje: “Por que diabo, será que eu era importante?” Só posso concluir... Puta que pariu, isso aí tem que ser um negócio do tipo: “Esse cara não pode existir!” Muito bem, agora, na hora que eu, por acaso, começo a ser tão bem-sucedido é o caso de dizer: “Pô, realmente, eu sou um cara perigoso!” Só posso dizer assim.

Trecho retirado daqui.

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