18 de maio de 2004

O Anjo Bêbado das estradas. por mauro dahmer

São Fransisco. Noite. Enquanto um bando de girafas maneja garfos e facas para comer seu delicioso churrasco, um conversível solitário se acidenta saltando o muro de cactus em flor. Apesar do forte estrondo, o rapaz que dorme na casa não percebe nada e, em sono profundo, encarna um zumbi de sua época. Nem morto nem vivo, protege seu estado mental daquilo que o papai pós ?guerra tenta lhe enfiar goela abaixo. Cool. Na vitróla da década de 50 tocam Chat Baker ou as Quatro Estações. Sexo, Jazz e paraísos artificiais. Amanhã é dia de pegar a estrada de volta para Nova Iorque. Nada de entrar para o corinho dos contentes. Mais tarde aguns críticos vão dizer que ele e seus amigos eram apenas doidões em busca de aventuras. Estavam enganados. Jack Kerouac escreveu como um príncipe de sua época e como ninguém fizera antes.

Jean-Louis Kerouac nasceu em 1922, filho da voluntariosa classe operária americana que venceu guerras e batalhas, aceditou na liberdade e, supostamente, ajudou a construir a maior democracia do Ocidente, daqual todos os seus filhos deveria se orgulhar.

De ascendência franco-canadense e formação católica, numa américa protestante, Jack Kerouac teve seu quinhão trágico na vida real e dele fez a sua escrita. Sorte nossa.

Depois de tentar remediar a situação financeira da família conquistando uma bolsa de estudos, jogando futebol americano, na Columbia University, começou a andar com uma turma da pesada pelas ruas de Nova Iorque. Allen Ginsberg, Neal Cassidy, Lucien Carr e William Burroughs, entre outros. Entrou para a marinha mercante, onde provavelmente adquiriu o gosto pela vida errante e pela aventura. Em terra, tomando o rumo da costa oeste, inventou uma América nova que ficava no meio de uma estrada, no nada. Descobriu na batida do jazz, em hotéis baratos e no convívio com seus amigos uma nova onda. Já tinha publicado The Town and the City, quando numa de suas viagens escreveu uma das novelas que definitivamente mudariam sua vida e a cara do mundo em que vivemos hoje. Em On The Road, Keourac inaugurou sua prosa espontânea, influenciada pelos beats do jazz e pela escrita automática dos surrealistas. Inventou algo estranho demais para o seu tempo e pagou caro por isso. [...]

*artigo publicado no jornal Zero Hora em 23 de outubro de 1999

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