15 de setembro de 2003

Série Bebidas


Ilustração neoclássica de Leonetto Cappiello
Arte no vinho
A arte, em todas as suas vertentes, sempre foi considerada um fenómeno universal e intemporal. Nos últimos cem anos, ela associou-se ao fenómeno emergente da publicidade. E, em Portugal, o vinho foi um dos negócios que primeiro se aperceberam desta oportunidade dourada
SE FOSSE possível estabelecer uma data para o nascimento da publicidade - e da sua paixão ambígua pela arte -, não repugnaria ao amador destas coisas admitir que a França dos finais do século XIX produziu alguns dos precursores desse fenómeno mediático atualmente associado a todo e qualquer tipo de comércio.
Curiosamente, o Portugal que bolsava ódios políticos de vários quadrantes e se enterrava no lamaçal da insolvência e do atraso não foi alheio ao fenómeno de que a França se apresentava - a par de muitas outras descobertas e novidades - como precursora. Quase na mesma época em que a «arte menor» dos cartazes dava os seus primeiros mas já seguros passos, um conhecido comerciante de vinhos com gostos e tendências actualizados ciclicamente em Paris iniciava uma das primeiras e talvez a mais potente campanha de «marketing» e publicidade que à época se poderia imaginar.
Adriano Ramos Pinto, fundador da empresa de vinhos do Porto do mesmo nome, investiu fortemente nesse reino ainda praticamente desconhecido da publicitação de produtos, utilizando brindes, frases persuasoras, colagens perversas à retórica mística, poesia dirigida, painéis de azulejos e escultura... E, acima de tudo, a arte dos cartazes, de que vislumbrara já as potencialidades promocionais nas suas assíduas visitas à cidade-luz.

«Ele tocava todos os instrumentos da publicidade. Usou tudo: oferecia taças para campeonatos de futebol, alas inteiras de hospitais, conseguiu que o avião de Gago Coutinho e Sacadura Cabral levasse uma das suas garrafas - utilizando depois o facto como efeito promocional - e ofereceu uma enorme fonte em mármore de Carrara ao município do Rio de Janeiro.» Graça Nicolau de Almeida, directora do arquivo da Adriano Ramos Pinto, destaca até um aspecto que hoje em dia só daria motivo para umas boas risadas: «Em 1897, ele mandou para o Brasil um 'croquis' de um dos seus cartazes para saber se o consideravam impudico. É que na alfândega não deixavam entrar desenhos de nus...»
Foram vários os artistas contratados por Adriano Ramos Pinto para as suas actividades promocionais. O italiano Leonetto Cappiello - o mais famoso desenhador de cartazes do início do século - e o triestiano Leopoldo Metlicovitz foram sem dúvida os dois mais importantes artistas que colaboraram nas suas campanhas publicitárias.
De Metlicovitz ficaram célebres os cartazes da série «Tentações». Imagine-se um infeliz Santo Antão, já meio despido, de mãos postas numa última mas já inútil prece, rodeado por sensuais mulheres nuas que lhe estendem, cada uma, o seu cálice de Porto e a promessa de muito calor suplementar... Em primeiro plano, o corpo feminino é esplendoroso no recorte do seio, de mamilo erecto, e na magnificência do torso e das generosas nádegas. «Mais adiante, por detrás de Sant'Antão, outras três mulheres deitadas estendem cálices, sorrindo sensualmente, meio dormidas na noite que envolve o anacoreta», descreve José-Augusto França no seu texto Cappiello e Outros Numa Publicidade Artística Portuguesa, onde explica o fenómeno de «marketing» desenvolvido por Adriano Ramos Pinto.
Do celebrado Leonetto Cappiello, Adriano Ramos Pinto recebe um primeiro cartaz que corresponde à proporcionalidade da posição da sua empresa no mercado sul-americano: ao centro, um gigante sorridente, coroado de louros e vestindo um «collant» verde e uma camisola vermelha, avança a enormes passos sobre uma multidão de minúsculos personagens, que fogem, apavorados, abraçando as suas também minúsculas garrafinhas. O «lettering» é objetivo: «Vinho do Porto Adriano Ramos Pinto» preenche o cimo e o lado esquerdo do cartaz, que é rematado do lado direito com «O maior de todos». Cappiello fará ainda um outro cartaz para o negociante portuense, exactamente um ano antes da morte deste, que ocorreu em 1927, mas já longe da sensualidade agressiva que caracterizara as primeiras obras.

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