3 de maio de 2004


Ignorância do outro mundo


Aprendi nas aulas de catecismo que religião é questão de fé; e fé, sabemos, independe de experiência ou interpretação. Aceitam-se os pontos fundamentais e indiscutíveis da religião, qualquer religião, ou não se tem fé.

Esse princípio simples, ensinado a meninos (naquele tempo as aulas de catecismo eram separadas por sexo) de 9 ou 10 anos, bastaria para responder a pergunta da revista IstoÉ (edição nº 1.803, de 28/4/2004). Na matéria "Saber do outro mundo", a revista pergunta: "Ciência e religião não combinam, certo?". Certíssimo. Não combinam mesmo, e a revista deveria parar por aí. A IstoÉ, no entanto, não parou, e o resultado foi uma das matérias mais mal informadas dos últimos tempos – o que não é pouco, considerando-se os padrões baixíssimos da imprensa brasileira.

No samba do jornalista doido da IstoÉ crenças tradicionais misturam-se com espiritismo, astrologia, umbanda, telepatia e bioenergética. Como seria tedioso fazer o inventário completo das tolices da matéria, examinaremos uns poucos pontos. De início, ficamos sabendo que nos Estados Unidos busca-se a aproximação entre ciência e religião. A IstoÉ deve dispor de fontes melhores do que a prestigiosa revista Nature. Em trabalho de 1998, Larson e Witham [LARSON, J. ; WITHAM, L. "Leading scientists still reject God". Nature, v. 394, n. 6691, p. 313, 1998] mostraram que a crença em Deus entre os cientistas de elite diminuiu acentuadamente desde o começo do século e hoje é adotada por apenas 7% dos pesquisadores entrevistados. Isto é, 93% dos cientistas não têm religião.

[...]

A religião impede a construção do conhecimento porque parte de conceitos apriorísticos. A crença em Deus não é tratada como hipótese, mas como verdade acima de qualquer questionamento. Isso é o oposto da ciência. Alguns cientistas contemporâneos, como o agnóstico Stephen Jay Gould, tentaram contemporizar insistindo na idéia dos "diferentes magistérios" para separar os domínios da ciência dos da religião. O conceito é intelectualmente insatisfatório e apresenta problemas insuperáveis para a religião.

No instante em que a religião é autorizada a violar as leis da física, ela se torna objeto de questionamento científico; no instante em que a ciência investiga questões consideradas tradicionalmente transcendentais – a origem da vida e do universo –, ela invade o terreno da religião. Começando por Kepler e Galileu, a ciência foi empurrando Deus para cada vez mais longe dos homens. Se a religião aceitar as limitações do universo objetivo de Monod e explicações naturalísticas para a existência diária, Deus ficará limitado a uma descontinuidade fundamental do espaço-tempo, ou qualquer que seja a explicação cosmológica contemporânea. É disso que Stephen Hawking fala quando diz estar perto de "ler a mente de Deus".

Como é improvável que religiões renunciem a prerrogativas milenares, continuaremos a assistir ao espetáculo desgraçado que José Saramago chamou de "fator Deus", que tantas misérias causou e tantas outras causará.

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