26 de janeiro de 2004

Crítica: Caetano orienta afago cruel à cidade dos forasteiros
(Pedro Alexandre Sanches - Folha de S.Paulo)

Não parecia ter muito nexo, a princípio, o paralelo que Rappin" Hood fez entre Caetano Veloso e os rappers, pelo tempo que o artista baiano passou exilado em Londres.

Mas é preciso refletir sobre o que o mano paulistano nos disse. Ele se acha parecido com Caetano no exílio. É habitante típico de São Paulo: pobre, preto, periférico, podado. Sente-se exilado dentro de casa. Viu-se domiciliado por instantes pelo ato generoso de Caetano convidá-lo para comemorarem, juntos, os 450 anos de uma cidade habitada por 53% de forasteiros.

Não havia figura mais adequada para honrar a data solene que Caetano, homem que se sente estrangeiro em qualquer lugar. Ele espalhou generosidade cantando com Rappin" Hood, Jair Rodrigues, Nando Reis, Jair Oliveira e Zé Miguel Wisnik.

Só foi se sentir à vontade e em casa no abraço apertado de Gilberto Gil, amigo de identidade baiana e ex-migrante nordestino em São Paulo, como ele. Homem-ponte que é, Gil suavizou o amor de Caetano pelo exílio ao participar de bela e breve cena de cumplicidade com Jair Rodrigues, antípoda alegre e indomável deles dois. Elis Regina, outra ex-migrante, fez-se presente na Ipiranga com a São João, soldando o triângulo Caetano-Gil-Jair.

Ao apresentar o filho de Jair, ex-Jairzinho, Caetano titubeou entre a generosidade e a vocação para pai disciplinador. Deixou que o menino cantasse sua afronta a "Sampa" (78), "Uma Outra Beleza" (2002), que ousa reclamar com doçura da imagem em negativo que a canção de Caetano traçou para a cidade-abrigo. Era quase meia-noite. Caetano se alvoroçou e tentou interromper Jair Oliveira. Viu que não seria possível, lançou um olhar baixo e um sorriso melancólico, deixou o menino paulistano tomar posse da cidade natal à 0h do aniversário.

Concedeu integração de posse a Rappin" Hood, que intrometeu sua "Rap du Bom" (2001) na "Odara" (77) de Caetano. Coisas da vida, Rappin" Hood roubou do rico para dar aos pobres, cantando "se liga no som/ aumenta o volume que é rap do bom".

A certa altura, MC Caetano opinou: o Brasil só será inteiro quando São Paulo for feliz. Defendia, cruel, que SP é o fígado do Brasil.

Encerrou o rito com todos os convidados e o hino maldito "São São Paulo" (68), de Tom Zé, o migrante baiano tropicalista que conseguiu conciliar dentro de si SP e Bahia. Irmã mais velha de "Sampa", "São São Paulo" discorre sobre belezas paulistanas tendo de mirar suas feiúras.

Timoneiro, Caetano errava as letras enquanto tentava orientar com amor revigorado a condução da nau São Paulo (Brasil) a, quem sabe, um tempo em que será possível apenas gostar da cidade (do país), quando os próprios paulistanos (brasileiros) saberão e quererão se auto-honrar sem censura. Obrigado, sr. Caetano.


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