31 de janeiro de 2005


ESTANTE CLANDESTINA

Editores tentam enfrentar na Justiça movimentos de fundo anarquista, que lançam livros ilegalmente na internet


Por Ana Paula Sousa

Ninguém sabe como eles se chamam e nem de onde vêm. Mas suas publicações já estão se tornando conhecidas nos corredores das universidades e no setor editorial brasileiros. Eles se auto-intitulam sabotadores. E sua editora é o site Sabotagem. No
slogan, disparam sua filosofia: Conhecimento não se Compra. Se Toma.

A subversão dos direitos autorais e a criação de um sistema alternativo de difusão de livros, um dos temas-chave do Fórum Social Mundial (que acontece de 26 a 31 de janeiro em Porto Alegre), tem nos integrantes do Sabotagem seus representantes mais radicais. O site oferece, para download gratuito, cerca de 200 títulos.

De ilegalidade, eles podem ser acusados. De mau gosto, não. Nessa biblioteca clandestina há de Foucault, Dostoievski e Kafka a títulos recentes de José Saramago, Gabriel García Márquez e até Chico Buarque, passando ainda por poesias e textos políticos.

Eles também já fizeram suas incursões pelo mundo real, com a impressão de dez livros, todos com capas novas e um editorial do grupo. A tiragem mínima, de cerca de 200 exemplares, tem um sentido mais simbólico - para não dizer provocador - do que prático, já que a distribuição é para lá de amadora. Os livros impressos saem pelo
preço de custo, de R$ 6 a R$ 10.

Ocultos sob endereços de e-mail, os integrantes do site orgulham-se de dizer que, em geral, se recusam a dar entrevistas. "Para a revista em que trabalhas, abrimos uma exceção", asseguram. Mas não sem ditar as regras. Num primeiro momento, parece que laçá-los é missão para hacker.

Apenas cinco dias após o envio do primeiro e-mail CartaCapital obteve retorno do grupo. Na ligação, feita de um orelhão de Porto Alegre, sugeriram que a entrevista fosse feita via Messenger, um sistema de conversação on-line. O argumento de que tal método seria confuso não convenceu Julia, a garota do outro lado da linha. "É bem
melhor por Messenger. Assim tu vais poder sentir melhor o coletivo. É importante falar com vários membros e, como fica cada um num lugar do País, esse é o único jeito."

Imposição aceita, no dia e hora marcados pipocaram na tela do computador os apelidos Poe, Giulietta, Gorilla, Baudelaire e Monet. Para se ter uma idéia de quem são esses jovens, um breve perfil de dois deles: Poe tem 24 anos, é professor de Geografia do Ensino Médio e mora em São Paulo; Giulietta, tem 21, mora no interior do
Rio Grande do Sul e concluirá o curso de Direito no meio do ano.

A explicação para os codinomes tem um pé no intelecto e outro na prática. "A identidade oculta é a nossa principal estratégia e a possibilidade de agir sem ser visto sob o véu de uma identidade coletiva", explica Poe. Graças a essas identidades "voláteis", também escapam de umas e outras.

Em meados de 2004, quando digitalizaram Stupid White Men, de Michael Moore, entraram na mira da Câmara Brasileira do Livro (CBL), a pedido da W11, editora de Moore no Brasil. Mas não receberam a notificação que detonaria um possível processo judicial porque, simplesmente, ninguém os encontrou.

Wagner Carelli, diretor da W11, não pode nem ouvir falar neles. "Eles são ladrões e covardes, uns filhinhos de papai que não têm mais nada para fazer", ataca. "Ficam aí bancando o Robin Hood, mas o que eles querem mesmo é a pequena publicidade." Carelli pondera que essa pirataria não atinge o seu negócio, já que ninguém deixa de
comprar um livro por causa do site. "Mas eu pago imposto, não vivo de trambiques e, moralmente, não posso aceitar que essa gente fique roubando livros!"

Os sabotadores, obviamente, não se acham criminosos. O site, garantem eles, está ancorado numa ideologia. Durante a entrevista, fazem referências a autores como Hayke Bey, Baudrillard, Chomsky e Luther Blissett e a grupos com iniciativas semelhantes às suas, como o coletivo italiano Wu Ming e o movimento Squatt da Europa.

Antes de entrar para o grupo, todos já haviam participado de outros movimentos, de rádios livres a atos anarquistas. "O que atrai no Sabotagem é a possibilidade de ação direta, de atacar noções e práticas que considero não democráticas. Agimos politicamente na desconstrução de um discurso que atende ao status quo", define
Giulietta.

Poe defende que, só com a democratização da informação, pode-se pensar numa transformação social. E exemplifica: "Há três meses, recebi um e-mail de um menino do interior do Nordeste perguntando qual seria o melhor modo de imprimir os livros. Ele disse que, finalmente, a escola pública onde a mãe dele trabalha poderia ter
uma biblioteca. Eu fiquei de queixo caído".

Para que mais gente possa imitá-los, os sabotadores incluem no site um manual que detalha o processo de digitalização dos livros originais - escanear página por página, passar corretor ortográfico e, depois, encontrar um provedor estrangeiro que abrigue o site, uma vez que, no Brasil, seriam logo descobertos.

Questionados sobre a situação dos autores, que deixam de ser remunerados, os jovens se dividem. Alguns defendem que o dinheiro não deve ser o único estímulo de um escritor, que ele deve escrever pensando num "bem maior"; outros destacam que os direitos autorais protegem a editora, e não o autor. Giulietta arremata: "Quem diz que o que fazemos é pirataria não está interessado em publicar nossos argumentos nem em falar sobre o que estamos propondo".

O Sabotagem chama a atenção pelo extremismo e pelo anonimato, mas, na verdade, outros tantos grupos - ou pessoas isoladas - vêm rejeitando a propriedade intelectual e a estrutura do copyright. Felipe Corrêa, de 26 anos, formado em Editoração, é um deles. Um dos criadores da editora Faísca, que não possui nem registro nem costuma pagar direitos autorais, Corrêa é contra o copyright tradicional, mas também não acha justo, simplesmente, atropelar os autores.

Antes de publicar qualquer coisa, ele telefona para o escritor pedindo autorização. Fez isso, por exemplo, com Noam Chomsky quando quis colocar no prelo Notas sobre o Anarquismo, lançado em parceria com a editora Imaginário. "Ele autorizou imediatamente. Mas eu não sou radicalmente contra o direito autoral. Às vezes, até pagamos alguma coisa para o autor, mas nunca o valor de mercado", explica.

Por não existir juridicamente, a Faísca não pode colocar seus títulos em livrarias e, claro, está sob permanente ameaça. Mas isso está longe de preocupar Corrêa: "Meu propósito é divulgar textos militantes, que ajudem a esclarecer as pessoas".

Nesse mesmo trilho corre José Roberto Abrahão, da Alexandria Virtual, que disponibiliza em seu site ou títulos já em domínio público ou aqueles autorizados pelos autores. "Não acho que seja uma questão financeira, uma vez que duvido que os downloads causem prejuízos reais. É uma questão de postura mesmo", defende. "Além
disso, a tendência é que cada vez mais autores autorizem a divulgação de seus textos na internet."

Não é o que pensam as editoras tradicionais. Mauro Lorch, dono da editora Guanabara Koogan e diretor da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), diz que, este ano, a principal meta da entidade - que age em conjunto com a CBL - é coibir a expansão desses movimentos. "A democratização da leitura se dá através das
bibliotecas e do barateamento do produto", lembra. "Por enquanto, essas ações não atingem diretamente o nosso negócio. Mas, se não agirmos rapidamente, passarão a atingir."

De sua sala em Brasília, o diretor de políticas digitais do Ministério da Cultura, Cláudio Prado, dá a entender que não se alinha com a ABDR. "A internet é um veículo da pirataria ou da democratização do acesso?", provoca. "A lei deve ser respeitada, mas também não podemos deixar de olhar para esses movimentos. Eles evidenciam a necessidade de flexibilização dos direitos autorais e mostram que existe uma demanda por um novo modelo de gestão dos produtos culturais."

[site citado na reportagem: http://www.sabotagem.cjb.net/ ]

Fonte: Carta Capital

Nenhum comentário: